terça-feira, 28 de outubro de 2008

Olhares



A cantora brasileira Maria Bethânia declama num dos seus discos o excerto de um poema muito bonito de Fernando Pessoa que diz assim: «Como as coisas são engraçadas/quando a gente as tem nas mãos/e olha devagar para elas». Quantas vezes você já olhou, terna e calmamente, para uma criança adolescente ou adulto deficiente mental?
Quantas vezes você já olhou para uma pessoa com deficiência sem pena, sem expectativas, só e tão somente para conhecê-la? Para auscultar-lhe o espírito, sem esperar nada dela; somente para comunicar com ela através do olhar? Olhar para as pessoas deficientes tem constituído grande parte do meu trabalho nos últimos anos. Na verdade, temos de ser muito persistentes e passarmos por muitas experiências frustrantes, se quisermos ter algum êxito numa tal missão. Mas, pensando bem, o que haverá no interior daquele cérebro danificado? Será que um cérebro danificado, um sistema nervoso comprometido é suficiente para destruir o espírito do homem ou mulher? Digo-vos que não. Certamente que não. Através do olhar, de um olhar profundo de amor podemos ultrapassar as barreiras neurológicas e orgânicas que separam a pessoa deficiente mental do nosso mundo de pessoas ditas "normais". Foi sempre através de um olhar calmo e prolongado que fiz muitas descobertas sobre o mundo interior do deficiente mental e sobre as minhas próprias deficiências. Foi através do olhar que descobri lucidez, mesmo em pessoas portadoras de deficiência mental profunda. Não encontro palavras que consigam descrever a minha alegria em detectar naqueles corpos afectados, uma réstia de luz, de ternura, de afecto, de vida e mesmo de tristeza por tantos e tantos anos de isolamento e de solidão.eu tenho-os olhado, incansavelmente, à procura deles mesmos, como uma jóia preciosa que vale a pena conhecer e convido-vos a todos vocês, leitores amigos, que me acompanham neste trabalho de descoberta, de múltiplos olhares, não só de pessoas deficientes, mas de todas as pessoas, cujas vidas e os seus problemas, constituem a principal razão de ser, e de existir, deste blogue. Pois como canta a Amélia Muge numa das suas mais belas canções: «Todos os dias nasce uma pessoa». E só por isso vale a pena viver e lutar!...